sábado, 7 de abril de 2012

29 anos sem Clara Nunes: A deusa dos orixás


REPRODUÇÃO




Por Amanda Borba.

No dia 02 de abril de 1983, na madrugada de Sábado de Aleluia, nossa música perdeu uma das suas maiores intérpretes e, talvez, a principal cantora popular brasileira. Clara Nunes tinha 39 anos de idade quando morreu vítima de um choque anafilático e lutou pela vida durante vinte e oito dias até o seu sofrimento final.

Jamais entendi porque muitos especialistas em música não dão muito valor a sua obra, diferentemente de outras grandes cantoras nacionais que são exaltadas ao extremo. Acredito que o fato de ter sua imagem ligada às religiões afro-brasileiras seja um dos motivos.

Desde que me conheço por gente que escuto a seguinte frase: “Clara Nunes cantava muito, mas suas músicas eram de terreiro, podia ter gravado canções melhores”. Creio que o preconceito existente com as religiões afro-brasileiras impede que as pessoas enxerguem a riqueza de sua obra musical.

Há quatro anos conheci a obra de Clara Nunes. A “Tal Mineira” possuía uma das vozes mais lindas de que se tem notícia e, em minha opinião, ao lado de Maria Bethânia, foi uma das melhores intérpretes da nossa música, sendo a que melhor cantou samba, música brasileira por excelência.

Desde a morte de Carmen Miranda, Clara Nunes foi a artista que mais construiu sua carreira baseada numa imagem afro-brasileira aproximando-se de escolas de samba e de seus compositores diferenciando-se de outras cantoras contemporâneas como Elis Regina, Maria Bethânia e Gal Costa. Inclusive, foi a primeira cantora que quebrou o tabu de que "cantoras não vendem discos". Entretanto sempre declarou que seu intuito não era apenas vender discos ou ser uma sambista, mas sim uma “cantora popular brasileira”, tanto que gravou diversos ritmos como forró, marcha-rancho, samba-canção, bossa-nova, frevo e músicas folclóricas.


"Você passa e eu acho graça" de Ataulfo Alves e Carlos Imperial

Em 1966, Clara gravou seu primeiro disco, dedicado principalmente a boleros, sendo este um fracasso total. A gravadora Odeon fez Clara gravar múltiplos gêneros musicais como boleros, músicas românticas, jovem-guarda, até que em 1968, com a ajuda de Ataulfo Alves, conseguiu gravar samba, conquistando certo sucesso com a música “Você passa e eu acho graça”.

Contudo o divisor de águas tanto na carreira quanto na vida espiritual foi uma viagem à África no início dos anos 70. Ela voltou transformada e extasiada com a experiência. Na volta, Clara Nunes elaborou uma nova proposta de carreira dando início a sua consolidação artística fortemente marcada por um estilo e imagem que aproximou a cantora do samba e da umbanda, sendo rotulada de forma pejorativa como “sambista, cantora de macumba”.


"Clarice" de Caetano Veloso e Capinan.

A carreira de Clara Nunes pode ser dividida em três fases diferentes. A primeira fase foi marcada por um espaço no mercado fonográfico que, inicialmente, tentou transformá-la num “Altemar Dutra de saias”, ou seja, numa cantora de boleros. A segunda fase se caracterizou pela descoberta da África e da umbanda, transmitindo um novo estilo à sua imagem artística. A terceira fase diz respeito ao seu desejo de ser uma cantora popular brasileira colocando no centro de sua obra a ideia de mestiçagem na identidade nacional e como as religiões afro-brasileiras se fixaram na cultura popular.

Clara construiu sua imagem de “Guerreira” graças a sua fama de lutadora (ficou órfã cedo e tentou inúmeras vezes, sem sucesso, engravidar) e seu envolvimento pessoal com o candomblé e a umbanda, sendo que seus orixás de cabeça, Ogum e Iansã, são considerados santos guerreiros. Clarinha tornou público o uso de pulseiras, guias, danças de orixás, gestos, posturas corporais e até mesmo tabus alimentícios e outras informações que despertavam a curiosidade das pessoas.


"Guerreira" de João Nogueira e Paulo César Pinheiro.

Durante o período da ditadura militar, as canções possuíam um caráter politico e protestavam contra o governo, sendo este um momento de total ausência de aspectos do Brasil nas canções. Por outro lado, a “Guerreira” pautou sua trilha na finalidade de divulgar o que ela considerava como a legítima cultura brasileira. Clara era uma estudiosa da cultura popular brasileira, de seus ritmos e de suas manifestações e graças a isso fez o candomblé e a umbanda chegarem a um público mais amplo e de uma maneira positiva, sem folclorizá-las, apresentando o lado alegre, vibrante, majestoso, mágico e hedonista dessas religiões, além de cantar diversos pontos de umbanda e adaptá-los aos parâmetros da indústria musical.

De certo, sabe-se que Clara não era compositora (escreveu uma ou outra composição), sua grande habilidade era interpretar as canções alheias. Como dito anteriormente, Clara foi uma das melhores intérpretes brasileiras, pois a interpretação que dava as músicas era tão marcante e com tanta intensidade emocional que estabeleceu uma profunda identificação com as músicas que gravava, tanto que a grande massa as classificava como “músicas de Clara”. Como dito por Chico Buarque, Clara transformava a canção.


"Morena de Angola" de Chico Buarque.

O repertório de Clara Nunes permite pensar na diversidade mestiça da cultura brasileira, da mistura das três raças – índios, negros e brancos – afirmando nessa mestiçagem a presença africana em nossa cultura, mas sem negar o conflito presente nas relações sociais. Isso pode ser identificado em canções como “Canto das Três Raças”, “Nação”, “Jogo de Angola” e “Tributo aos Orixás”.

Clara nasceu católica, conheceu o espiritismo kardecista, tornou-se umbandista e demonstrou em muitos momentos a ambiguidade típica do povo-de-santo, transitando entre as religiões anteriores. Seu casamento, por exemplo, foi celebrado por um padre. Esse sincretismo religioso tão popular no Brasil e que fez parte da experiência religiosa da cantora aparece explicitamente na música “Guerreira”.


"Conto de areia" de Romildo e Toninho. Um ponto de umbanda estilizado.

Sua morte gerou uma série de especulações, inclusive religiosas. O fato é que a morte de Clara Nunes no auge da carreira foi o suficiente para torná-la a “deusa dos orixás”. Como sua imagem era fortemente ligada à religião, muitos fãs e amigos realizaram diversos rituais e tratamentos alternativos buscando sua recuperação. Até hoje existem casos de pessoas que afirmam terem sido curadas por Clara Nunes! É impressionante perceber como é importante essa presença da experiência religiosa de Clara Nunes na vida de seus fãs e admiradores. Nas comunidades de Clara Nunes no Orkut, por exemplo, utilizam saudações típicas e esclarecimentos sobre o que é a umbanda e o candomblé.

Pra mim, Clara tinha uma beleza incrível e isso pode ser conferida nos inúmeros clipes que existem no youtube. Uma beleza exótica, brejeira, autêntica, natural e simples. Sua voz é firme e quente e sempre tenho a impressão de que ela está saboreando as palavras. Nossa língua portuguesa fica ainda mais bonita cantada por Clara Nunes. A “Tal Mineira” é a Rainha do Samba e melhor que ela ainda está para nascer!

Salve Clara Guerreira!


"Canto das Três Raças" de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte.